domingo, 19 de março de 2017

Romeu Augusto | Cerâmica na Cruz da Légua

No corrente mês de Março, celebrando o sexagésimo aniversário, a Rádio Televisão Portuguesa disponibilizou online uma parte significativa do seu arquivo histórico. Os arquivos da RTP constituem preciosa matéria de investigação para o estudo da segunda metade do século XX em Portugal. O facto de agora passarem a estar facilmente acessíveis, vem preencher uma das vocações fundamentais da prestação de serviço público, devolvendo aos contribuintes os resultados de um trabalho desde sempre por eles financiado.
Como seria de esperar, também a documentação sobre a produção artística, incluindo a cerâmica, vem dar a conhecer dados importantes, promovendo a proximidade com a obra e personalidade de alguns autores menos estudados e divulgados. É o caso de Romeu Augusto, cuja obra pioneira é tratada em entrevista no magazine Um Dia Com... Romeu Augusto, de 3 de Janeiro de 1974, do qual reproduzimos abaixo algumas imagens a preto e branco.


Romeu Augusto - placa de suspensão. © CMP



Romeu Augusto - placa de suspensão, tardoz. © CMP




Originário de Bragança, Romeu Augusto vai residir para Lisboa ainda criança. Estuda na Escola Comercial Ferreira Borges em regime nocturno e durante o dia começa a frequentar o curso de cerâmica da Escola António Arroio. Pouco tempo depois, resolve abandonar o curso comercial optando pela dedicação total ao curso de cerâmica, que conclui em 1933. Paralelamente, frequenta aulas de desenho ornamental e desenho de figura na Sociedade Nacional de Belas Artes.
Após a conclusão do curso, faz um interregno de cerca de oito anos na actividade cerâmica, dedicando-se à pintura decorativa.
Em 1947, muda-se para a freguesia de Pedreiras, distrito de Leiria, fixando-se no lugar de Cruz da Légua, a fim de fundar, juntamente com Álvaro Augusto das Neves, Jaime Augusto das Neves e Rogério Amaral, a Cerâmica Artística e Industrial, Lda. (C.A.I.L.), uma sociedade industrial com sede na Moitalina, Porto de Mós, dissolvida em 1964 (MAFLS).
Estabelecido numa região herdeira de grande tradição cerâmica e rica em jazidas de barro vermelho, conhecido pela sua qualidade e bela coloração, Romeu Augusto dedica-se à produção em nome próprio, dando início a uma pequena oficina. Situada na berma da antiga estrada principal de ligação Lisboa - Porto, a oficina vai crescendo em função de uma clientela de passagem, como aconteceu com muitas outras, na região de Alcobaça.



 Oficina de Romeu Augusto, Cruz da Légua, 1973. © RTP



 Oficina de Romeu Augusto, Cruz da Légua, 1973. © RTP



 Oficina de Romeu Augusto, Cruz da Légua, 1973. © RTP


Inicialmente, as propostas de Romeu Augusto passam essencialmente pelo aproveitamento da cor intensa do barro vermelho da região, como elemento fundamental da decoração. Cria várias linhas de loiça utilitária, decoradas com engobes brancos sobre o vermelho da argila, revestida com vidrado incolor. Começa por explorar motivos e formas de cariz popular, grafismos repetitivos e contrastantes, concebendo uma gramática decorativa que passará a ser explorada por várias fábricas e pequenas oficinas da região, mantendo-se até hoje, sem o reconhecimento das suas origens ou autoria.



 Romeu Augusto com uma das suas peças utilitárias, ainda por vidrar, 1973. © RTP



 Peças utilitárias de cariz popular, oficina de Romeu Augusto, 1973. © RTP



 Peças utilitárias de cariz popular, oficina de Romeu Augusto, 1973. © RTP


Pode considerar-se que a marca autoral que define a obra cerâmica de Romeu Augusto é o uso dos óxidos de cobre directamente sobre o barro, criando um contraste de complementares (verde/vermelho), uma solução simples e visualmente atractiva, sublinhada pelo plasticidade de pinceladas fortes e texturadas. A esta fórmula, junta-se por vezes o engobe branco, reforçando o efeito gráfico, como pode ver-se na placa com peixe em relevo, no topo da página. Abaixo, reproduzem-se algumas peças exemplares desta conjugação de materiais.




Romeu Augusto na sua oficina, Cruz da Légua, 1973. © RTP



Romeu Augusto - Jarrão pintado com óxido de cobre. © CMP



Romeu Augusto - Jarrão pintado com óxido de cobre, detalhe. © CMP




Romeu Augusto - Jarrão pintado com óxido de cobre, tardoz. © CMP



Serviço de chá pintado com oxido de cobre, oficina de Romeu Augusto, 1973. © RTP



Romeu Augusto - Jarra pintada com óxido de cobre. © Joel Paiva


Romeu Augusto - Prato pintado com óxido de cobre. © CMP



Romeu Augusto - Prato, tardoz com assinatura. © CMP


No tardoz, a assinatura ROMEU é acompanhada de + DA LÉGUA, P. MÓS, PORTUGAL, sendo a palavra CRUZ em Cruz da Légua, sempre substituída pela grafia de uma cruz.

Como o próprio ceramista afirma, as suas referências fundamentais estão na olaria popular e nas peças ancestrais que vai conhecendo em vistas a museus nacionais ou através de publicações, nunca tendo saído do país, nem se considerando influenciado por nenhum artista específico.
Esta conjugação particular de referências, parece constituir uma súmula do que acontece na generalidade da produção portuguesa da década de 1940, tendo continuidade no pós-guerra, em articulação com a produção moderna que escapa à cópia ou imitação dos modelos internacionais.
Num olhar mais atento, as peças abaixo reproduzidas, para além do uso de técnicas primitivas, evocam formas e decorações de séculos recuados, interpretadas segundo uma síntese moderna.



 Pintura com óxido de cobre, oficina de Romeu Augusto, 1973. © RTP



Romeu Augusto - Jarra.  © Oportunity



Romeu Augusto - Jarra. © MAFLS




 Peças em exposição, oficina de Romeu Augusto, Cruz da Légua, 1973. © RTP




Romeu Augusto - Jarra. © Oportunity



Romeu Augusto - Jarra. © Oportunity


A metodologia de trabalho de Romeu Augusto consistia na concepção das peças ao torno, seguidamente preparando moldes, sobretudo para jarras, que reproduzia em pequenas séries. Para o enchimento dos moldes era usada lastra ou barbotina, conforme o formato das peças. Conjuntos de novos modelos eram criados periodicamente, sendo a pintura manual e os motivos decorativos os principais elementos distintivos entre as peças. A tendência para a criação de objectos únicos de maior pendor autoral foi aumentando ao longo dos anos, tornando-se mais evidente na primeira metade da década de 1970.

Ainda que em menor quantidade, o ceramista explora também as formas livres e assimétricas típicas da expressão moderna do pós-guerra, bem como pinturas de um gestualismo abstracto ou tirando partido dos efeitos plásticos dos escorridos, a que não terão sido alheios os contactos com outros ceramistas, como Silva Santos (?), com oficina local, por onde passaram vários pintores vindos da SECLA.
Alguns exemplares com estas características podem observar-se reproduzidos abaixo.




 Peças em exposição, oficina de Romeu Augusto, Cruz da Légua, 1973. © RTP



Peças em exposição, oficina de Romeu Augusto, Cruz da Légua, 1973. © RTP



Romeu Augusto - Jarra. © Oportunity



 Peças em exposição, oficina de Romeu Augusto, Cruz da Légua, 1973. © RTP



Romeu Augusto - Jarras. © MercadorVeneziano


Os pratos contêm motivos decorativos onde encontramos referências que vão folclore estilizado característico da década de 1940, a imagens importadas das ilustrações infantis, elementos retirados da olaria popular, até às figuras de animais recuperadas da pintura decorativa da faiança dos séculos XV a XVIII.  



Romeu Augusto - Prato com motivos folclóricos. © Objectismo




Detalhe de prato com motivos  folclóricos, 1973. © RTP



 Detalhe de prato com motivos  folclóricos, 1973. © RTP



Romeu Augusto - Prato com motivos animais. © Objectismo



Romeu Augusto - Prato com motivos animais. © Objectismo



Romeu Augusto - Prato com motivos animais. © Objectismo



Romeu Augusto - Prato com motivos animais. © Objectismo



Romeu Augusto - Prato com motivos animais. © Objectismo



Romeu Augusto - Prato com motivos animais. © CMP



Romeu Augusto - Prato, tardoz. © CMP



A oficina de Romeu Augusto parece ter prosperado sobretudo graças a clientes particulares, sendo estes o maior veiculo de divulgação do seu trabalho. Embora as vendas fossem dominadas pelo público nacional, sabe-se que também respondeu a encomendas internacionais, referindo em especial uma encomenda vinda do Japão, negociada através de uma empresa exportadora com sede no Porto. Embora não se saiba exactamente quando encerrou a oficina, sabe-se que aquando da realização deste programa de televisão, em finais de 1973, as vendas tinham entrado em decadência com as alterações efectuadas no trajecto Lisboa-Porto e o desvio da Estrada Nacional.



 Peças em exposição, oficina de Romeu Augusto, Cruz da Légua, 1973. © RTP



Romeu Augusto - Jarra com quatro asas. Colecção particular.



CMP* agradece aos coleccionadores a cedência de imagens de peças das suas colecções.

4 comentários:

  1. Prezada CMP*:

    Acerca do prato com motivos folclóricos, não sei se esta peça da C.A.I.L. terá escapado ao seu habitualmente atento escrutínio...

    http://mfls.blogs.sapo.pt/161217.html

    Saudações!

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    1. Caro MAFLS,

      Escapou mesmo!
      Muito obrigada pela referência, importante para estabelecer alguma continuidade, aparentemente inexistente, entre a produção da C.A.I.L. e de Romeu Augusto.

      Saudações!

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  2. No edifício onde funcionou a CAIL, dissolvida em 1964, funcionou depois a Cerâmica Alcoa Industrial de José Rosa, uma empresa de produção de faiança. Acrescentou-se Industrial ao nome Cerâmica Alcoa, empresa que José Rosa possuía em Alcobaça, para que se mantivesse o alvará da anterior CAIL.
    Entre a actividade desenvolvida pela CAIL e José Rosa funcionou nas instalações uma pequena cerâmica de José Silva Santos.

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    1. Muito obrigada pela informação! Gostaríamos muito de saber mais sobre José Silva Santos, cuja oficina produziu peças bem interessantes. Volte sempre, CMP*

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