sábado, 18 de janeiro de 2014

Painéis da Casa da Conchas, Figueira da Foz

"Batida pelo grande mar, tendo à direita a bonançosa bahia de Buarcos e à esquerda os rochedos em que assenta o castello de Santa Catharina, que defende a foz do Mondego, a villa da Figueira offerece aos banhistas incomparaveis condições.
A povoação é rica pelo commercio do sal e pela exportação dos vinhos da Bairrada.
Uma companhia edificadora tem construido casas agradaveis, em um bairro novo junto à foz do Mondego, em sítio elevado e sadio. N'este bairro ha um hotel, Foz do Mondego, onde se recebem hospedes a 1$000 reis por dia.
A villa tem ainda mais dois hoteis, o Figueirense e o da Praça Nova, um pequeno theatro, uma praça de touros e dois clubs: a Assembleia Recreativa, no bairro novo, onde se dança às terças e sextas-feiras, e a Assembleia Figueirense, no antigo palácio dos condes da Figueira, onde se dança à quinta-feira e ao domingo.
Além das soirées nos dois clubs, as senhoras costumam organisar concertos e bailes. A soirée é uma das grandes preocupações d'esta praia, e não será por falta de contradanças que os banhistas deixarão de se regosijar n'este sitio.
As burricadas e os pic-nics a Buarcos, ao farol da Guia, ao palacio de Tavarede, vão-se tornando cada vez mais raros.
Por uma disposição superior, cujo alcance debalde nos exforçamos por attingir, é prohibido o ingresso dos burros no interior da villa, o que não obsta a que lá entrem muitos - disfarçados.
(...) Na Figueira, entre a população fixa, que habita a antiga villa e frequenta a Assembleia Figueirense, e a população fluctuante, que habita principalmente o bairro novo e frequenta a Assembleia Recreativa, não ha hostilidades, mas existe uma forte emulação provinciana, que se descarrega muitas vezes em pequenos episodios dignos de Dickens ou de Balzac."

Ramalho Ortigão, "As Praias de Portugal", Magalhães & Moniz Editores, 1876. Págs. 107 a 108.



Casa da Conchas - Esplanada António da Silva Guimarães, Figueira da Foz. © CMP


Cerca de quarenta anos após a publicação de "As Praias de Portugal" de Ramalho Ortigão, seria edificada no chamado Bairro Novo, a Casa das Conchas.
Situado em local privilegiado, a Esplanada António da Silva Guimarães, erigida em memória do oficial da marinha mercante e empreendedor da exploração das minas e indústrias do Cabo Mondego, o complexo composto pela Casa da Conchas, o antigo edifício do turismo e o Castelo Engenheiro Silva, é testemunho das transformações sócio-culturais operadas na Figueira da Foz, na transição entre os séculos XIX e XX, fazendo notar o gosto ecléctico de uma tipologia arquitectónica de habitação privada de veraneio, completamente distinta do restante aglomerado urbano.
Esta diversidade construtiva ir-se-á disseminar durante a primeira metade do século passado, dando origem à rica variedade do edificado que constitui o tecido urbano do Bairro Novo, com exemplares revivalistas, historicistas, de influências Arte Nova, Art Déco e até bauhausianas.



Bilhete postal, ed. José dos Santos Alves, com data anterior a 1928. Figueira Digital


Bilhete postal, década de 40. Figueira Digital


A Casa da Conchas deve o seu nome ao remate do topo da fachada, guarnecido com uma fileira de elementos escultóricos em forma de concha de vieira (nome cientifico Pecten maximus). A temática marinha estende-se ao conjunto azulejar organizado segundo um friso horizontal ao longo de toda a fachada, imediatamente acima das janelas do segundo piso e um conjunto de painéis distribuídos sobre as janelas do piso térreo.
Os recursos estilísticos Arte Nova dominam a composição, em entrelaçados fitomórficos de linhas ondulantes, simulando algas que enquadram espécimes da fauna marinha ou a ela associados, várias espécies de peixes, búzios, gaivotas, caranguejos, etc.
Esta concepção não encontra correspondência na restante decoração da fachada, de composição rectilínea com alguns elementos classicizantes, contribuindo para uma mistura sóbria mas ecléctica.


Casa da Conchas, Figueira da Foz - friso azulejar, detalhe. © CMP


Casa da Conchas, Figueira da Foz - friso azulejar, detalhe. © CMP


Casa da Conchas, Figueira da Foz - friso azulejar, detalhe. © CMP


Casa da Conchas, Figueira da Foz - friso azulejar, detalhe. © CMP


Desconhecemos qual a fábrica responsável pela produção deste conjunto azulejar, bem como os seus autores ou autor. No contexto português a sua originalidade é notória, bem como o cuidado na representação fiel ou caracterização das espécies, todas elas diferenciadas e provavelmente reproduzidas a partir de gravuras científicas.



Casa da Conchas, Figueira da Foz - friso azulejar, detalhe. © CMP


Casa da Conchas, Figueira da Foz - friso azulejar, detalhe. © CMP


Casa da Conchas, Figueira da Foz - friso azulejar, detalhe. © CMP


Casa da Conchas, Figueira da Foz - friso azulejar, detalhe. © CMP


Casa da Conchas, Figueira da Foz - friso azulejar, detalhe. © CMP


Casa da Conchas, Figueira da Foz - friso azulejar, detalhe. © CMP


Os painéis, embora em razoável estado de conservação, apresentam já algumas lacunas e azulejos erradamente posicionados. Aparentemente a fachada terá sido alvo de recente intervenção de restauro, sendo que numa das varandas do último piso foram incompreensivelmente colocadas guardas em betão, completamente desintegradas do contexto.


Casa da Conchas, Figueira da Foz - painel de sobrejanela. © CMP


Casa da Conchas, Figueira da Foz - painel de sobrejanela. © CMP


Casa da Conchas, Figueira da Foz - painel de sobrejanela. © CMP


Casa da Conchas, Figueira da Foz - painel de sobrejanela. © CMP


Casa da Conchas, Figueira da Foz - painel de sobrejanela. © CMP


Casa da Conchas, Figueira da Foz - painel de sobrejanela. © CMP
 

Casa da Conchas, Figueira da Foz - Vista parcial com placa toponímica. © CMP


Recentemente reabilitada a Esplanada António da Silva Guimarães, na sua longa plataforma virada a poente, mantém-se o lugar privilegiado para usufruir de uma abrangente panorâmica sobre a costa, desde entrada da barra até ao Cabo Mondego. 
A Casa das Conchas, actualmente transformada em edifício de apartamentos é testemunho de uma época dourada, da estância balnear cada vez mais descaracterizada que é a Figueira da Foz. 
Novas construções de escala desmesurada ou obras de remodelação mal conduzidas podem ser fatais para uma povoação que cresceu e formou a sua personalidade no cuidado dos pequenos detalhes. Façamos votos para que a conservação seja uma realidade, que os bons exemplos arquitectónicos prevaleçam e que aqueles que abusivamente vieram contaminar o seu território, sejam erradicados.


Casa da Conchas, Figueira da Foz - painel de sobrejanela. © CMP


Casa da Conchas, Figueira da Foz - painel de sobrejanela. © CMP



segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Serviço de chá - GAL

Valorizando a articulação entre os espaços da blogosfera dedicados à divulgação da produção de cerâmica em Portugal, especialmente o século XX e a linguagem moderna, aproveitamos para lhes prestar homenagem e agradecer a generosidade dos seus autores na partilha de conhecimentos, propondo em início de ano, uma triangulação com Memórias e Arquivos da Fábrica de Loiça de Sacavém e Moderna uma outra nem tanto, publicando também algumas peças do fabrico da efémera unidade fabril lisboeta, GAL.
Segundo nos informa MAFLS,  a fabrica de faianças GAL funcionou durante um curto período, tendo sido fundada a 27 de Junho de 1935 e encerrando em Dezembro de 1937.
Situava-se na Rua Alves Torgo que, a par da Azinhaga da Fonte do Louro, dava seguimento à antiga estrada de Sacavém, artérias de saída de Lisboa em direcção a Norte. O edifício, hoje desaparecido, ocupava o nº 279, provavelmente demolido aquando da abertura da Avenida Almirante Gago Coutinho, no prolongamento da Avenida Almirante Reis.
Pouco se sabe sobre a fábrica GAL, nem sequer o que significa a sigla que a designava. No entanto, mais uma vez graças a MAFLS, sabemos que os seus sócios fundadores foram António Geraldes, Horácio Canto de Oliveira e José Canto de Oliveira, desconhecendo se algum deles seria responsável pela concepção da louça ali produzida.
Apesar da curta existência, as poucas peças conhecidas da sua produção demonstram enorme modernidade. Como pode ver-se no serviço de chá tête-à-tête que agora mostramos, onde se fazem notar influências do design alemão da República de Weimar e de alguma da produção britânica Art Déco.



GAL - Serviço de chá, modelo 209, 1935-37. © Joel Paiva

GAL - Serviço de chá, modelo 209, 1935-37. © Joel Paiva


Composto por bule, leiteira, açucareiro, duas chávenas e dois pires, as suas formas compactas e aerodinâmicas ecoam influências Vorticistas e Futuristas, apesar de recusar o uso de formas geométricas simples. Embora dentro das propostas formais Art Déco, é dominado por linhas orgânicas, mais tarde exploradas pelo design industrial americano do pós-Guerra.
Tem em comum com as peças apresentadas por MAFLS e MUONT o facto da pintura, neste caso a negro brilhante, ser aerografada sobre o vidrado cor de marfim. A qualidade frágil da faiança é compensada pelo excepcional desenho das formas.
Até ao momento, não foi possível identificar nenhum serviço da produção internacional que tenha servido de modelo a este. O que levanta a questão: será este um serviço de design português ou da autoria de algum designer vindo de fora?



GAL - Bule, açucareiro e leiteira, modelo 209, 1935-37. © Joel Paiva

GAL - Bule, açucareiro e leiteira, modelo 209, 1935-37. © Joel Paiva

GAL - Bule, açucareiro e leiteira, modelo 209, 1935-37. © Joel Paiva


O corpo das peças toma a forma de uma esfera achatada, com caneluras horizontais na metade inferior. 
As asas do bule, açucareiro e leiteira são faixas que envolvem o corpo, num arco elíptico, causando um efeito dramático. O mais surpreendente no desenho, é o facto destas faixas negras poderem simular aplicações em baquelite. 
A baquelite, um antepassado dos materiais plásticos, é uma resina sintética, quimicamente estável e resistente ao calor, inventada no início do século XX. Foi muito utilizada nos Anos 20 e 30 em pegas e asas de várias peças utilitárias, normalmente metálicas, que implicavam o uso de conteúdos quentes. Vulgarmente aparece em cores escuras (preto ou castanho) ou branco, por serem mais estáveis.  
Assim, como podemos ver no bule abaixo, a asa, tampa e bico parecem simular elementos de um material diferente, à semelhança do que era usual com as aplicações em baquelite, no entanto, na realidade são em faiança vidrada e pintada a aerógrafo.

O bule mede c.23 cm de comprimento, c.17 cm de diâmetro e c.12 cm de altura.



GAL - Bule, modelo 209, 1935-37. © Joel Paiva

GAL - Bule, modelo 209, 1935-37. © Joel Paiva

GAL - Bule, modelo 209, 1935-37. © Joel Paiva

GAL - Bule, modelo 209, 1935-37. © Joel Paiva

GAL - Bule, modelo 209, 1935-37. © Joel Paiva

GAL - Bule, modelo 209, 1935-37. © Joel Paiva


A leiteira mede c.16 cm de comprimento, c.12 cm de diâmetro e c.7 cm de altura.



GAL - Leiteira, modelo 209, 1935-37. © Joel Paiva

GAL - Leiteira, modelo 209, 1935-37. © Joel Paiva

GAL - Leiteira, modelo 209, 1935-37. © Joel Paiva

GAL - Leiteira, modelo 209, 1935-37. © Joel Paiva



O açucareiro mede c.17 cm de comprimento, c.11,5 cm de diâmetro e c.9 cm de altura.



GAL - Açucareiro, modelo 209, 1935-37. © Joel Paiva

GAL - Açucareiro, modelo 209, 1935-37. © Joel Paiva

GAL - Açucareiro, modelo 209, 1935-37. © Joel Paiva


Este serviço é o modelo 209, não tendo indicação do número da decoração, como acontece noutras peças da mesma fábrica, o que poderá indiciar não existirem outras variantes decorativas. No entanto, como não se conhecem outros exemplares do mesmo modelo, é impossível ter a certeza.
A marca é manuscrita em letras minúsculas, sendo semelhante em todos as peças componentes do serviço.



GAL - Serviço de chá, marca de fábrica. © Joel Paiva



A chávena mede c.10 cm de diâmetro e c.4 cm de altura. 
O pires mede c.15,5 cm de diâmetro.


GAL - Chávenas de chá, modelo 209, 1935-37. © Joel Paiva

GAL - Chávenas de chá, modelo 209, 1935-37. © Joel Paiva


No pires a decoração é assimétrica, com apenas um segmento do círculo pintado a negro, promovendo um jogo de ilusão óptica com a asa da chávena, compacta e da mesma cor.



GAL - Chávena de chá, modelo 209, 1935-37. © Joel Paiva

GAL - Chávena de chá, modelo 209, 1935-37. © Joel Paiva

GAL - Chávena de chá, marca de fábrica. © Joel Paiva


Da mesma fábrica:



Mais uma vez, CMP* agradece ao coleccionador Joel Paiva, a colaboração e cedência de imagens de peças das suas colecções, sem as quais esta publicação não teria sido possível.